O Reino de Deus, por Christopher Dawson
- Vida ao Inverso
- 26 de dez. de 2018
- 11 min de leitura
Atualizado: 21 de mai. de 2019

Em um artigo anterior, postado no site e intitulado "A ideia de Revelação, por Christopher Dawson", foi desenvolvido o conceito de que na história de Israel nasceu uma tradição religiosa singular, que expressa uma religião encarnada na sua própria história. Deste modo, temos no Antigo Testamento o registro da tradição de Israel e também registro da revelação divina na aliança do Sinai, na Lei e nas palavras dos profetas, que, devido está última, culmina no anúncio da vinda do Reino de Deus que se realizaria pelo advento do messias - ao mesmo tempo rei e salvador - e pelo julgamento das nações.
No seu livro "A formação da Cristandade", Dawson desenvolve o tema do "Reino de Deus" (no capítulo 6), do qual faremos algumas notas para compreendermos este assunto fundamental para a compreensão da formação do Cristianismo.
Uma expectativa messiânica
A expectativa messiânica estava em seu auge no primeiro século da era cristã. A revolta do povo hebreu contra o poder mundial dos gentios levou a destruição de Jerusalém e a reconstrução do judaísmo em novas bases. Do outro lado, neste mesmo contexto, tivemos o surgimento do cristianismo.
A mentalidade dos judeus que estavam no contexto dessas guerras é uma resistência intensificada pela crença bastante literal numa súbita intervenção divina que os daria a total vitória no fim, após sucessivas derrotas, como é possível notar no "tratado sobre a guerra entre as forças das trevas e as forças da luz", documento de Qumran.
A vinda de Jesus e a emergência do cristianismo foram quase contemporâneos aos últimos estágios da comunidade de Qumran, durante o período de trégua, quando o povo hebreu estava tomando coragem para o grande conflito com Roma. Assim como os homens de Qumran, os discípulos de Jesus viviam na expectativa do advento iminente do Reino, que marcaria o fim de uma era e o início de uma nova ordem mundial.
Um Reino presente e futuro
O Reino pregado por Jesus não era o reino que os judeus tão esperavam, como um rei guerreiro triunfante que destruiria o poder dos gentios e restauraria o poder de Israel. Mas, o "Reino" dos Evangelhos está muito mais próximo do Reino dos autores apocalípticos, já que supõem a ideia de um novo mundo, uma nova dispensação, uma nova ordem mundial. Mesmo aí, existem diferenças vitais, uma vez que o Reino do Evangelho já está presente (Lc 17.21; Mt 12.28).
Em algumas passagens dos Evangelhos, o Reino é apresentado como o poder divino manifestado nas obras sobrenaturais de Jesus. Em outras, e mais comumente, o Reino é mostrado como um novo estado ao qual os homens são chamados, ou uma nova descoberta, como um banquete nupcial (Mt 22), um grão ou semente (Mt 13.24, Mc 4.26-29), colheita (Mc 4.26-29; Mt 13.24.30), a um tesouro escondido (Mt 13.44), a uma parábola de grande valor (Mt 13.45).
Dawson nota que nos Evangelhos a pregação do Reino e a missão de Jesus, como figura central da nova dispensação, é reconhecida em vez de afirmada. E quando, finalmente, Pedro confessa que Jesus é "o Messias" (Mt 16.16), isso é imediatamente seguido não por qualquer declaração de um triunfo futuro, mas pelo anúncio feito por Jesus de sua paixão e morte. A revelação do mistério do Reino é, ao mesmo tempo, a revelação do mistério da cruz.
A novidade suprema do Evangelho de Jesus é a vinda do Reino e a nova aliança espiritual que os profetas vaticinaram concretizadas somente pela paixão do messias (Mt 26.28, Mc 14.24, Lc 22.20). Deste ponto em diante, tudo é mudado. A sanção da nova aliança na última ceia é imediatamente seguida pela rejeição de Jesus como messias por parte dos judeus, de sua condenação e morte nas mãos dos gentios por instigação dos judeus e, finalmente, por sua ressurreição.
Esses acontecimentos, na visão cristã é claro, são a manifestação final da divina missão de Jesus, é o cumprimento histórico da profecia e a porta de entrada para uma nova era. Com eles, o Reino de Deus já chegou, uma vez que Jesus está com autoridade ao lado do Pai. E, alude, à tal autoridade messiânica incumbir os apóstolos após a ressurreição para sua vocação (Mt 28.18-19). Ou seja, assim como a antiga aliança do Sinai gerou o Antigo Israel, agora, a nova Aliança no sangue de Cristo cria um novo povo, um segundo Israel espiritual (Fp 2.10-11).
A Igreja como processo de estabelecimento do Reino
Essa Igreja será constituída pela efusão do Espírito Santo, que fora prometido pelo Cristo Ressuscitado, uma Igreja que agora era um instrumento do Reino em um sentido especial, visto que era o corpo de Cristo, e nela e por ela que Jesus estabelecera seu Reino na Terra.
Esse processo gradual de formação do cristianismo, estava diante de um cenário de guerras e da destruição que arruinou as pontos entre os mundos dos gentios e dos judeus. Os judeus foram forçados a recorrer ao estudo da lei como último estágio da identidade nacional judaica, ao passo que os cristãos tornaram caminho oposto e começaram, inicialmente por tentativas, a se aproximar cada vez mais do mundo gentio que os rodeava.
Apesar disso, Dawson recorda que já existia uma diferença no judaísmo da Palestina e nos das cidades helênicas. Ele explica que o Judaísmo da Palestina foi formado em resposta aos desafios apresentados pelo império Selêucida durante o período macabeu, do qual tinham um forte sentimento de oposição ao paganismo e a resistência na manutenção de relações com o helenismo. Já os judeus das cidades helênicas (Diáspora), por outro lado, embora mantivessem a tradição religiosa básica, eram muito mais abertos à influência da cultura helenista (p.ex. a tradução Septuaginta), desde que não conflitassem com o monoteísmo. Dawson cita que os judeus da diáspora formavam mais de 75% da população judaica total no Império Romano, justificando que uma ponte entre o judaísmo e o helenismo pode ser facilmente compreendida.
Neste sentido, foi o cristianismo, portanto, e não o judaísmo que colheu a safra desses primeiros esforços missionários feitos pelas comunidades judaicas nas cidades helenísticas. Ademais, após a revolta de 66 a 70 d.C. (Nero), que resultou na destruição de Jerusalém, e as duas revoltas subsequentes de 115-117 (Guerra Parta - Trajano) e 132-135 (Adriano), a comunidade judaica na Palestina, aos poucos, definiu o modelo também para as comunidades da diáspora, e tal modelo não era de um apostolado missionário, mas de uma revelação cuidadosa da lei e elaboração de comentários a partir dos preceitos, um crescimento que cada vez mais isolava os judeus do contato com o mundo dos gentios, mas que talvez foi bom para fortalecer os laços da comunidades judaicas em face da desintegração ou dissolução.
Teremos então o apóstolo Paulo, como extensão da pregação apostólica aos gentios e a criação de uma igreja helênica, que deu o revolucionário passo de insistir no direito dos cristãos gentios de se tornarem membros da ecclesia sem a necessidade da circuncisão ou da observância da lei mosaica (Gl 3.26-29).
Foi essa nova pregação que criou a grande rede de igrejas de língua grega ao longo das margens do Mar Mediterrâneo até Antioquia, ao longo da Ásia Menor, da Macedônia, da Grécia e da própria Roma. Pode-se notar isso no Livro dos Atos dos Apóstolos, uma espécie de épico cristão. É como uma Eneida espiritual da Igreja de Jerusalém a Roma, com Paulo, como a figura heroica, que efetua a missão sagrada por meio de trabalhos sobre-humanos e sofrimentos.
Christopher Dawson cita que não existe registros comparáveis para demonstrar como a Igreja se espalhou em direção ao Oriente e como o cristianismo siríaco da Mesopotâmia surgiu (pois as tradições sobre a fundação da Igreja de Edessa são lendas). Mas é provável que o cristianismo siríaco tenha derivado da igreja dos gentios, possivelmente de Antioquia, e não da igreja judaica de Jerusalém. Aos poucos, deve ter perdido o contato com a Igreja dos gentios de modo que, por volta do terceiro século, a vemos imergir na posição de seita heterodoxa - isolada tanto da igreja dos gentios como da sinagoga judaica e dividida internamente pelo cisma dos ebionistas e pela estranha facção dos elquesaístas, surgidos por volta do ano 101.
Neste meio tempo, cita a figura de Pedro, que devido sua autoridade na Igreja de Jerusalém, preservou a unidade da propaganda revolucionária de Paulo aos gentios e da tradição judaico-cristã. Por isso, há um bom motivo para acreditar-se que foi sob influência petrina, e representando a tradição de Pedro, que o Evangelho mais antigo, o de São Marcos, foi escrito em Roma, durante os anos 60, o que confere uma estrutura histórica estável, aceita tanto por judeo-cristãos e por gentios, como o fundamento da fé.
Posteriormente, quando Lucas repetiu essa mesma narrativa evangélica de forma ampliada, combinou-a numa narrativa única e consecutiva com sua história da fundação da Igreja de Jerusalém, sua expansão pela pregação apostólica e, sobretudo, a missão de Paulo aos gentios. Deste modo, foi criado uma escritura clássica oficinal na qual todos os elementos da tradição cristã - os dizeres de Jesus, a fundação das igrejas, as epístolas paulinas e outras tradições apostólicas poderiam ser incorporadas.
Nessa altura, na última metade do século I, o cristão não parecia mais uma espécie de judaísmo. Era, para os devidos efeitos, uma nova religião - o Evangelho da Salvação da humanidade em Cristo, o Filho de Deus. Mas, vale ressaltar que, quanto mais estavam desunidos da comunidade judaica, contudo, mais estavam expostos à hostilidade do mundo pagão, já que não tinham uma posição social de uma comunidade reconhecida de compatriotas para protegê-los. Assim, os primeiros cristãos pareciam viver num vácuo social, pendendo entre os mundos dos judeus e dos gentios, e esse isolamento cultural nada mais era senão a expressão social de uma questão espiritual mais profunda, da qual estavam plenamente conscientes.
Estes cristãos, após a vinda de Cristo que rompeu com a antiga ordem, já tinham o Reino pela fé e esperança, agora esperavam somente pela manifestação final e o triunfo. Consequentemente, as condições externas da vida presente não importavam. A Igreja era a sociedade do mundo que há de vir, e eles já possuíam 'o penhor do Espírito' (2Cor 1.22) e o antegozo da vida no novo mundo.
Dawson cita o autor aos Hebreus demonstrando essa tensão e expectativa numa maravilhosa passagem em que explica a continuidade e a diferença das dispensações judaica e cristã (Hb 11-12.24). Diante desses eventos de transformação mundial, todas as diferenças de classe, raça e cultura entre os primeiros cristãos gentios desapareceram. A unidade da nova comunidade era essencialmente uma unidade sobrenatural, que não dependia de circunstâncias externas, mas da união espiritual dos fiéis entre si, em Cristo. Essa união era realizada, sobretudo, nos sacramentos que eram os canais para a transmissão da vida do Espírito e o meio pelo qual o fiel era incorporado no organismo divino ou corpo místico do qual Cristo era a cabeça (Ef 4.16).
A unidade orgânica sobrenatural não está limitada à vida espiritual interior do cristão - à vida da fé e da caridade -, mas também é um princípio de organização externa e de autoridade hierárquica, como as diferentes ocupações ou ministérios na Igreja. Na mentalidade deles, assim como Cristo fora mandado para o mundo pelo Pai, da mesma maneira os apóstolos foram mandados por Cristo, os ministros das igrejas locais - presbíteros, epíscopos, diáconos - recebiam a função e a autoridade dos apóstolos. Essa insistência da unidade apostólica na tradição, na doutrina e na autoridade percorre todo o ensinamento da cristandade primitiva, assim como o Novo Testamento e os escritos do período pós-apostólico.
Dawson lembra que de início o problema da organização eclesiástica não era tão grande, existia um respeito a autoridade dos apóstolos e os escolhidos por eles. Mas, após o falecimento dos apóstolos, o problema da organização eclesiástica se tornou de importância imediata para a Igreja. A insistência na unidade da Igreja e a manutenção da tradição apostólica permaneceram tão fortes quanto antes, mas, para ser eficaz tinha de ser intensificada pelo fortalecimento do ministério local e pelo laço da subordinação hierárquica.
Temos registro no período dessa tradição na carta escrita por São Clemente Romano para a Igreja de Corinto, por volta do ano 97, pois esta havia deposta do ministério os principais presbíteros. Então, vemos em Clemente a insistência no respeito a autoridade e da sucessão apostólica na Igreja, baseado na consequência necessária de sua crença de que os cristãos são um povo à parte - o "povo de Deus" no sentido literal. Note que mesmo após o rompimento com a tradição judaica, após uma geração, o raciocínio e linguagem de São Clemente está enraizado na antiga tradição hebraica de modo tão forte quanto o autor da epístola aos hebreus.
A Igreja formando cultura à partir do Reino
Agora, é a Igreja um povo à parte, com leis e modo de vida próprios, fato que o afastava dos judeus e dos gentios, igualmente. Provavelmente, pela pressão das hostilidades externas e perseguições grandes, foi produzido uma barreira natural que separou os cristãos do restante do mundo romano. Por dois séculos e meio uma longa guerra foi travada entre Igreja e Império. É bem verdade que para o Império, a distinção de judeus e cristãos não devia ser clara até o segundo século.
Nas páginas do Apocalipse, encontra-se a ideia da hostilidade entre a experiência que os cristãos tiveram no confronto com o Império Romano. Não é de surpreender, todavia, que a atitude de passiva hostilidade dos cristãos, a recusa em tomar parte em qualquer das cerimônias públicas e deliberada separação da vida civil do mundo helenístico-romano devessem ter provocado a suspeita e a hostilidade das autoridades.
Mas, por parte dos cristãos, perseguição e martírio eram reconhecidos como condições normais da vida da Igreja. Foram vaticinados nos Evangelhos e tinham como arquétipo supremo o exemplo do próprio Cristo. O mártir seguia os passos de seu mestre, e a morte expressava a identidade entre "a cabeça e os membros", que era o princípio chave da teoria paulina de Igreja.
Na primeira era da Igreja, o ideal de santidade estava corporificado na figura do mártir - o homem que "testemunha" com o próprio sangue a fé cristã. Teremos muita literatura que versará sobre este assunto: As Epístolas de Santo Inácio de Antioquia; o Martírio de Policarpo; Carta a Diogneto e etc. Estes documentos mostram como a expectativa do martírio era um dos fatores permanentes da vida cristã e como o triunfo dos mártires foi partilhado pelos fiéis como propriedade e glória comuns a todos.
Assim sendo, na cultura dos primeiros cristãos, a figura do mártir tomou o lugar da figura do herói da cultura pagã, e as vidas e legendas dos mártires substituíram os mitos heroicos e lendas que eram os elementos mais populares e persistentes da antiga cultura. Talvez aqui, podemos perceber a importância que existia do culto dos mártires para cultura cristã. Cada uma das igrejas importantes tinha seus próprios mártires, que eram tomados como intercessores especiais e cujo culto fortalecia a solidariedade da comunidade espiritual. Além disso, o culto dos mártires também encontrou expressão na arte e arquitetura, assim como na arte das catacumbas e na influência do martyrium, ou câmara funerária, no desenvolvimento da igreja de planta centralizada como cúpula.
Outro ideal importante era o da virgindade, que também remonta a primeira era da Igreja. Na verdade, os dois ideais estavam associados - primeiro, pelo culto das virgens mártires, como Santa Inês (304-317), bastante popular, e, em segundo lugar, pela ideia de que a virgindade era uma espécie de vida de martírio, um testemunho do poder da fé para transcender as fraquezas humanas. Assim, o ideal de ascetismo como uma luta heroica para superar o mundo e a carne remonta as origens e é associada pelos primeiros autores cristãos à ideia de martírio e virgindade.
Dawson também cita os ascetas, que não eram monges, mas chegavam próximos da vida monástica, já que eram cristãos vivendo uma vida ascética celibatária que os diferenciava dos demais fiéis. Eram, por assim dizer, pré-monges, e é fácil entender como tal instituição iria, inevitavelmente, evoluir.
Ao falar sobre o Reino de Deus, o filósofo da história Christopher Dawson, tem por objetivo demonstrar que a tradição religiosa "do Reino" desempenhou na história um modo de vida, uma cultura, que posteriormente formara o que conhecemos por "Cristandade".
Dificilmente no século II se pode falar de uma cultura cristã, contudo, havia sido postos os fundamentos para um novo modo de vida que não era nem grego, nem judeu, mas unia as duas tradições sob a inspiração de um novo espírito. Isso é expresso na Carta a Diogneto.
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