Uma introdução geral aos Evangelhos - Raymond E. Brown
- Victor Santos
- 29 de mai. de 2019
- 8 min de leitura
A palavra "Evangelho":
Brown explica que a palavra que traduzimos como "evangelho", vem do grego evaggelion ("boa notícia"), e não se referia a um livro escrito ou textos. Na verdade, era a proclamação de uma mensagem. Antes mesmo do contexto cristão essa palavra era utilizada como anunciar as "boas-novas" de vitórias nas batalhas, no culto imperial ou na presença do imperador em determinada cidade.
Na tradução LXX, as palavras correlatas a evaggelion traduzem a expressão hebraica biser (בִּשֵּׂר), que aparecem como variante em textos como 2Sm 18.20; 2Rs 7.9. No hebraico a palavra aspecto semelhante a proclamação de boas-novas, especialmente da vitória de Israel, vitória de Deus ou até proclamação gloriosas de Deus em favor de Israel.
Estudiosos debatem se Jesus usou a palavra "evangelho" para descrever a proclamação do seu reino, mas o que é certo é que seus seguidores utilizaram. Era para estes, boa notícia aquilo que Deus fez em Jesus (Rm 1.3-4,16).
O evangelista Marcos inicia sua narrativa com as palavras "Princípio do Evangelho de Jesus Cristo" (Mc 1.1). A boa notícia do que Deus fez proclamada a Israel, daqui em diante é proclamada em e por meio de Jesus Cristo a todos os povos (Mc 13.10). Para este autor, o reinado de Deus se atualizam nas ações de Jesus (perdão de pecados, cura dos doentes, saciação dos famintos, ressurreição dos mortos) e seus ensinamentos. Jesus é um rei a quem Deus torna vitorioso até mesmo quando os inimigos crucificam. Lucas e Mateus seguem este mesmo esquema básico (cf. Mt 4.23; 9.35; Lc 8.1;16.16).
O século II usará o termo evaggelion para designar os escritos cristãos. Diante da pluralidade de escritos evangélicos passou-se a fazer distinções dos tipos de textos, de modo que a introdução dos evangelhos canônicos colocou-se "Evangelho segundo...". Textos extra-canônicos (evangelho de Tiago, Evangelho de Pedro) e etc., não se autodenominavam evangelhos. Por uma questão de terminologia, o título "evangelho" para essas obras tem sido utilizado, pois são textos que falam sobre Jesus, sendo distinto de epístolas ou apocalipses.
Para melhor compreensão, pode ser útil distinguir duas categorias: material sobre Jesus (narrativas da infância e da paixão, coleção de ditos, coleção de milagres, discursos atribuídos ao Jesus ressuscitado - sem discutir se eram ou não chamados de "evangelhos" na Antiguidade ou se deveriam ser assim chamados hoje) e "evangelhos" (narrativas completas tais como encontramos nos quatro escritos canônicos que abrangem ministério público/paixão/ressurreição, e combinam milagres e ditos). Essa distinção serve somente para discriminar a discussão sobre o gênero de narrativa chamado "evangelho", e não um juízo preconceituoso em relação ao valor ou antiguidade do "material sobre Jesus".
O gênero literário "Evangelho"
Temos diversos autores que buscam descrever a origem do gênero "evangelhos sinóticos". Raymond E. Brown cita que existem diferenças entre biografias greco-romanas e os evangelhos: o anonimato deles, a ênfase claramente teológica e intenção missionária (Jesus não é só um mortal que ganha a imortalidade como recompensa; ao contrário, a ressurreição confirma a verdade daquilo que ele já era antes da morte), na eclesiologia antecipada, na composição com base na tradição da comunidade e na leitura durante a liturgia comunitária.
O evangelista Marcos, difere de modo especial do modelo de uma biografia, pois não enfatiza o extraordinário nascimento, a infância do herói e etc. explica que é provável que muitos dos leitores/ouvintes do século I, acostumados com biografias greco-romanas, não tenham sido tão acurados, e tenham pensado os evangelhos quase como vidas de Cristo, particularmente Mateus e Lucas, que começam com uma narrativa da infância.
Brown explica que existe a singularidade dos evangelhos. Pois, ainda que a ideia de escrever uma descrição da carreira de Jesus possa ter sido estimulada pela existência de narrativas da vida dos profetas, de filósofos famosos e de personagens universais, o que se narra acerca de Jesus é dificilmente redigido pelo simples desejo de oferecer informações ou de estimular rivalidade.
Aquilo que é narrado pretende receber uma resposta de fé e conduzir a salvação. Até certo ponto, a afirmação de João a respeito de seu objetivo aplica-se a todos os evangelhos (Jo 20.31). A palavra evaggelion em Paulo, com significado semelhante (Rm 1.1-4; 1Cor 15.1-8; 1Cor 11.23-26), indica que Marcos certamente não foi o primeiro a juntar o material sobre Jesus com um propósito salvífico, embora a sua tenha sido a mais antiga narrativa completa conservada.
A produção dos evangelhos exigia seleção do material sobre Jesus. É importante fazermos distinção de três retratos sobre Jesus para melhor compreendemos os evangelhos: o Jesus real, o Jesus histórico e o Jesus evangélico. Um retrato sobre o Jesus real incluiria tudo o que fosse interessante a seu respeito (toda biografia é seletiva), como datas exatas do nascimento e morte, detalhes reveladores sobre a família, como foi sua criação, onde trabalhou antes de começar a pregar, como era, quais eram suas preferências, se era bem humorado, amável e apreciado pelos moradores de Nazaré e etc. Nos evangelhos, nada temos de semelhante a esses detalhes e essa é a razão de muitos estudiosos recusarem os evangelhos como biografias ou vidas de Cristo.
Um retrato do Jesus histórico é uma construção dos estudiosos baseados na leitura daquilo que jaz sob a superfície do evangelho, desprovido de todas as interpretações, alargamentos e desenvolvimentos que possam retratar o período de distância da morte de Jesus e o escrito dos evangelhos. Mas é preciso considerar que a investigação sobre o Jesus histórico jamais pode ser puramente objetiva, pois o retrato do Jesus histórico baseia-se em dados limitados e destinados a produzir uma visão minimalista. Pode oferecer o mínimo da particularidade do Jesus real. A ideia que a fé cristã depende de reconstruções do Jesus histórico é um perigoso mal-entendido, afirma Brown.
Já o Jesus evangélico é o retrato pintado por um evangelista. Provem de arranjo seletivo, feito pelo evangelista, do material sobre Jesus a fim de suscitar e fortalecer a fé que conduziria as pessoas para mais perto de Deus. O evangelista incluía somente informações que eram úteis ao seu objetivo, e as necessidades do público destinatário afetavam o conteúdo e a apresentação. Por essa razão os evangelhos, escritos por diferentes pessoas para públicos diferentes, em variadas décadas, tinham de ser diferentes um do outro.
Além desses três retratos, poderíamos citar o "Jesus verdadeiro", que seria a vida do Jesus verdadeiro que atraiu e convenceu discípulos que o proclamem por todo o mundo conhecido e qual todos queremos saber. É impossível ter acesso a esse retrato de Jesus, mas note que o Jesus real, seria a biografia dele, mas não conteria tudo sobre ele, teriam uma parcela de Jesus para as gerações posteriores. Essa narrativa excluiria aspectos de natureza religiosa e teológica.
A descrição do Jesus histórico (melhor dizendo, Jesus reconstruído historicamente), é a mais longínqua que podemos ter do Jesus verdadeiro. O Jesus reconstruído por estudiosos é baseado a poucas informações e terminaram na morte, sendo que para os que o conheceram disseram que ele suscitou. Portanto, o retrato dos evangelhos conservam quantidade significante de dados do Jesus real e se o propósito missionário deles não era estranho ao de Cristo, estão tão perto do Jesus verdadeiro quanto nós provavelmente podemos chegar.
Três etapas explicativas sobre a formação do evangelho:
O ministério público de Jesus (30-33 d.C.): Temos as memórias daquilo que foi dito e feito por um judeu que viveu na Galileia e em Jerusalém na década de 20. Ele estava no seu espaço e tempo, enfrentando os problemas desse espaço e tempo. Neste ministério, ele proclamou e fez coisas notáveis, o que os evangelistas lembraram de suas palavras e ações constituiu o "material sobre Jesus". Tais memórias eram seletivas porque eles se concentraram naquilo que dizia respeito à proclamação que Jesus fazia de Deus, e não às questões triviais do cotidiano.
A pregação apostólica sobre Jesus (33-60 d.C.): Os que vieram e ouviram Jesus tiveram o seguimento deles confirmado pelas aparições da ressurreição (1Cor 15.5-7) e chegaram a fé no Jesus ressuscitado como aquele mediante o qual Deus manifestou seu absoluto amor salvífico por Israel e finalmente por todo o mundo - uma fé que verbalizaram por meio de títulos confessionais (Messias/Cristo, Senhor, Salvador, Filho de Deus etc). A fé "pós-ressurreição" iluminou as lembranças do que eles tinham visto e ouvido antes da ressurreição. Deste modo, eles proclamaram os feitos e palavras de Cristo com o significado enriquecido. Chamamos esses pregadores de "apostólicos" porque compreendiam-se como enviados (apostellein) pelo Jesus ressuscitado, e a pregação deles é muitas vezes descrita como proclamação querigmática, que tinha por objetivo conduzir os outros a fé. Consequentemente, o círculo de pregadores missionários cresceu para além dos companheiros originais de Jesus, e as experiências de fé dos novos convertidos, como Paulo, enriqueceram o que foi recebido e proclamado. Vale ressaltar que neste estágio de desenvolvimento era necessário a adaptação da pregação ao público alvo.
Os evangelhos escritos (65-100 d.C.): Surgiu no período anterior coleções primitivas do material sobre Jesus (perdidas atualmente), além da conservação e desenvolvimento do material oral sobre Jesus que continuou até o séc. II. Provavelmente os quatro evangelhos canônicos foram escritos entre 65-100, as tradições do séc. II atribuem os escritos a apóstolos (Mateus e João) e dois companheiros de apóstolos (Marcos e Lucas). Os estudiosos modernos não atribuem mais a autoria a estes, mas a atribuição antiga pode ter sido feita à pessoa responsável pela tradição conservada e salvaguarda num evangelho particular (à autoridade por trás do evangelho) ou a quem escreveu uma das fontes principais daquele.
Nesta concepção de Brown, ele explica que para entendermos as diferenças nas redações dos evangelhos é preciso admitir que os evangelistas não foram testemunhas oculares do ministério de Jesus. Como poderia a testemunha ocular João (cap. 2) narrar a purificação do templo no começo do ministério e a testemunha ocular Mateus (cap. 21) situar o mesmo episódio no fim do ministério? Agora, se os evangelistas não foram testemunhas oculares e cada um recebeu o relato da purificação do templo de uma fonte intermediária, pode ser que nenhum dos dois (ou apenas um) tenha sabido quando isso ocorreu durante o ministério público. Cada evangelista organizou o material que recebeu a fim de retratar Jesus de forma tal que pudesse ir ao encontro das necessidades espirituais da comunidade para a qual estava endereçando o evangelho. "Dessa forma, os evangelhos foram organizados numa ordem lógica, não necessariamente numa ordem cronológica" [2]. Os evangelistas são como teólogos que direcionam o material transmitido por Jesus para uma direção particular.
É importante compreender as seguintes questões sobre a teoria da formação dos evangelhos apresentada por Raymond Brown:
Os evangelhos não são registros literais do ministério de Jesus
Os evangelhos podem ser considerados falsos se o propósito era oferecer descrição rigorosa ou biografia exata; mas, se a intenção era conduzir os leitores/ouvintes a uma fé em Jesus em Jesus que os abrisse ao senhorio ou reinado de Deus, as adaptações que tornaram os evangelhos menos literais (acréscimos da dimensão da fé, adaptação a novos públicos) foram feitas precisamente pra facilitar tal intento e, portanto, tornar os evangelhos verdadeiros.
As incrementações ou adaptações para formar os evangelhos não significa infidelidade a mensagem de Jesus, pois isso é um problema teológico, de forma que requer uma resposta teológica. Pois os que acreditam na inspiração divina sustentação que o Espírito orientou o processo, garantindo que o produto final dos evangelhos reflitam o que Deus enviou Jesus a proclamar
Muitos estudiosos tentam na comparativa dos evangelhos harmonizá-los em um só, mas isso é mais um distorção. Numa visão de fé, os quatro evangelhos e não uma versão harmonizada é o que importa, já que cada um deles tem sua perspectiva própria.

Raymond E. Brown (1928-1998) foi um teólogo católico norte-americano especialista na "comunidade joanina". Um grande estudioso do Novo Testamento, era doutor em Sagrada Teologia e em Línguas Semânticas. Brown tem o mérito de receber mais de 24 títulos honorários de diversas universidades, inclusive protestantes.
Foi um dos primeiros católicos a utilizar uma análise crítica da Bíblia e tem mais de 25 livros publicados.
O material aqui disponibilizado é uma síntese de uma parte da obra do Brown. Para compreender melhor esse tema e ter acesso a obra consulte: BROWN, Raymond E. Introdução ao Novo Testamento - São Paulo: Paulinas, 2012
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