Do conflito à comunhão – Revisitar a história para entender a Reforma
- Raylson Araújo
- 12 de jul. de 2018
- 5 min de leitura
Em outubro de 2016 o Papa Francisco acolheu membros da Igreja Luterana em audiência no Vaticano. Neste encontro, o Papa demonstrou uma alegria por celebrar aquele momento e encorajou os jovens católicos e luteranos a testemunharem a misericórdia se colocando juntos ao serviço dos mais necessitados. No final do mesmo mês, Francisco visitou Lund, na Suécia para junto a Federação Luterana Mundial, dar inicio as comemorações dos 500 anos da Reforma. Pois bem, esses atos do Sumo Pontífice e o uso da expressão “comemorar” tem gerado certo incomodo em alguns católicos. Diante disso, precisamos nos aprofundar em alguns pontos para entender o que significa o movimento ecumênico e a importância do diálogo Católico-Luterano.

Primeiramente, é preciso compreender a questão etimológica da palavra comemoração, que tem sua raiz no latim (commemorare), e que significa lembrar-se, trazer a mente. Portanto, não estamos falando de uma festa, mas sim de fazer memória do fato. Ou seja, não se trata de comemorar a divisão da Igreja, mas recordar o evento passado, superando as divergências para tornar possível o diálogo no agora e para que os atos negativos não se repitam. Celebramos então a fraternidade e a reconciliação, nunca a divisão. Podemos recordar as palavras do querido Papa João XXIII: “O que nos une é maior do que o que nos divide”.
Mas, se a Reforma completa 500 anos em outubro deste ano, completaremos em novembro apenas 53 anos de abertura ao diálogo ecumênico, que foi possível pelo movimento conciliar do Vaticano II (1962-1965). Ou seja, somos caçulas neste campo e infelizmente precisamos admitir que por quatro séculos e meio ficamos com nossas convicções, tratando o outro como herege, não nos reconhecendo como irmãos.
Com o Papa João XXIII, no Pentecostes de 1960, foi criado pela Igreja o Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos (PCPUC). Este foi um dos primeiros passos do catolicismo para o diálogo ecumênico. Interessante notar que este movimento se inicia com o catolicismo e sim com as Igrejas reformadas já no final do século XIX, que deram origem ao Conselho Mundial de Igrejas em 1948, do qual não tinha a participação da Igreja Católica, que reconheceu os esforços do CMI em 1949 e melhorou e estreitou as relações do diálogo ecumênico por meio do Papa João XXIII, o PCPUC e o Concílio Vaticano II.
A história da Igreja foi tremendamente marcada pelo Vaticano II, que foi fundamental para o movimento ecumênico, inclusive o Concílio contou com a participação de membros de outras confissões cristãs que puderam acompanhar (não votar) as sessões do Concílio. Os padres conciliares aprovaram textos como Unitatis redintegratio, Nostra Aetate e Dignitatis humanae, que incentivaram os trabalhos do PCPUC e das comissões de diálogo inter-religioso. Estes textos afirmam que “há elementos de salvação e verdade mesmo fora das estruturas da Igreja Católica Romana”. Afirmação esta que não foi novidade do concílio, mas um retorno as fontes patrísticas, resgatando o conceito de “sementes do verbo” de São Justino Mártir, no século II. Todos os Papas após o Concílio incentivaram ou contribuíram com a reflexão ecumênica. Paulo VI, por exemplo, encontrou o patriarca ortodoxo Atenágoras I em 1967, João Paulo II escreveu a encíclica Ut Unum Sint em 1995 e Bento XVI foi ao encontro do Patriarca Bartolomeu I na Turquia e estreitou os laços com os anglicanos.
Quando se faz memória da Reforma, não se tem o objetivo declarar um lado vencedor ou que alguém terá que ceder em sua doutrina ou coisas do tipo, mas se incentiva a uma revisão dos motivos da ruptura, reconhecer os excessos de ambos os lados e buscar a reconciliação. Neste sentido, católicos são convidados a reinterpretarem a imagem de Lutero, muito manchada ao longo da história por alguns autores. Claro, não se trata de canonizar Lutero, até porque os próprios luteranos reconhecem os seus erros, por exemplo, a perseguição contra os anabatistas. Mas podemos reconhecer que há pontos interessantes em sua teologia (poucos católicos conhecem os textos dele sobre a Virgem Maria).
Da mesma forma, os reformados são convidados a fazerem o mesmo percurso, entendendo o contexto que envolve a Igreja no período medieval, muito denegrida pelos historiadores. É dentro desta reflexão que os católicos podem olhar para Lutero de outra forma, superando a imagem do “monge herege”, procurando entender que sua busca não foi por uma ruptura total a principio, mas sim, romper com aquilo que não era cristão (acredito que ninguém em sã consciência concorda com a venda de indulgências ou outros abusos do clero na época). “Lutero tentou superar não o catolicismo em si, mas sim um catolicismo que não era inteiramente católico.” (Do conflito à comunhão, 21).
Diante deste mundo globalizado, o diálogo é fundamental, com o crescimento do pluralismo religioso é preciso ter em mente que este diálogo não pode se deixar levar pelo proselitismo. É necessário que cada um seja comprometido com a sua respectiva doutrina, que pode ser muito semelhante em alguns pontos, como também difere em outros.
Por isso, o documento “Do Conflito à comunhão”, texto da comissão de diálogo Católico-Luterana afirma: “pelas semelhanças doutrinárias o diálogo é possível; pelas diferenças, é necessário”. Ou seja, o diálogo ecumênico gera testemunho de fraternidade e solidariedade, principalmente diante de um mundo tão fragilizado por catástrofes naturais, conflitos armados e até a ameaça de um novo conflito mundial entre potências econômicas e nucleares. Inclusive, Francisco falou do ecumenismo de sangue, referindo-se sobre os mártires de hoje que derramam o seu sangue apenas por confessarem sua fé no Cristo, sejam eles católicos, ortodoxos, batistas ou luteranos. Neste cenário, católicos e reformados são convocados a assumirem o compromisso de ser “Luz do Mundo”, mas para que isso seja possível, antes de uma verdadeira reconciliação, tudo se inicia pedindo perdão a Cristo pela divisão de tantos anos, e este momento celebrativo é propício para tal.
No mês de junho deste ano, o Papa Francisco celebrou uma vigília ecumênica de Pentecostes em Roma. Em seu discurso exortou que a paz é possível! Mas é possível se estivermos em paz entre nós (cristãos). Temos que testemunhar essa paz e mostrar que os filhos de Deus (pelo batismo) podem superar as diferenças em busca da “unidade na diversidade reconciliada”, palavras do documento do diálogo Católico-Luterano The Apostolicity of The Church, recordada pelo Papa Francisco durante a vigília.
Portanto, o movimento ecumênico esta em plena comunhão com o catolicismo e fundamentado por meio do seu magistério, e as celebrações deste ano fazem parte deste diálogo e não é um ato isolado ou tresloucado do Papa Francisco. Mais ainda, o convite ao ecumenismo não é apenas uma ação institucional de determinada Igreja, mas sim uma resposta ao apelo de Jesus que nos chamou a viver a fraternidade: “Que todos sejam um, para que o mundo creia que tu me enviaste.” (Jo 17,21).
Ser “um” não é ser igual. Este “ser um” é relacional, é comunhão, é encontro, e a conscientização de que pertencemos ao Corpo de Cristo que é indivisível. Superando os preconceitos, sejamos um em Cristo.
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