A ideia de Revelação judaico-cristã, por Christopher Dawson
- Vida ao Inverso
- 26 de dez. de 2018
- 10 min de leitura

Christopher Dawson é o que chamaríamos de "historiador da cultura" e, mais do que isso, "filósofo da história". Ao trabalhar os grandes temas da história este autor busca universalizá-los, apresentar o sentido e a unidade dos fatos históricos. Para saber mais sobre Dawson [clique aqui]
Em seu livro "A formação da Cristandade", uma organização de palestras proferidas pelo autor, ele busca descrever o que possibilitou a unidade da Civilização Cristã. Para isso, Dawson faz uma breve análise cultural, identificando a ideia da "Revelação" e do "Reino de Deus" como marcas fundamentais para a formação do cristianismo.
Para o autor, são as tradições religiosas as grandes propagadoras de cultura e todas essas tradições pressupõem a existência de uma revelação divina. Consequentemente, as tradições religiosas são uma incorporação da revelação divina em um cânone de escritura sagrada. Por isso, a ideia de Revelação além de ser fundamentalmente religiosa e consequentemente cultural, é um grande ponto de análise para a formação do cristianismo.
A tradição religiosa
Originalmente, todas a tradições religiosas se consideravam únicas. Oriundas de uma tradição secreta, guardada pela classe sacerdotal ou casta, se mantinham na categoria do mistério, tido como a única verdadeira. Foi posteriormente, com a chegada dos impérios mundiais, que as tradições religiosas passaram a serem vistas como modos alternativos de expressar a mesma verdade. Talvez, isso surgiu por um interesse político para que as diferentes religiões cooperem em um vasto sistema imperial.
Apesar disso, para Dawson, o que fica claro é que as tradições religiosas desenvolveram de maneira independente, a ideia de revelação.
Ao enxergar as grandes culturas, percebe-se que todas discorrem sobre o tema da revelação: islamismo, judaísmo, cristianismo.
O processo de Revelação
Atualmente, os antropólogos modernos entendem que o homem tanto é criador como transmissor da cultura. No caso da religião, os teólogos antigos, entendem que é a "Palavra de Deus" que é o princípio dinâmico criador do modo de vida. O homem, recebe a comunicação divina pelo processo de Revelação, que é um ato criador, já que é o princípio de uma nova sociedade espiritual e que transcende a ordem temporal da cultura e coloca o homem em contato com uma ordem superior de realidade.
A Revelação para a história de Israel
A história de Israel é um exemplo deste processo de Revelação como ato criador de uma nova sociedade espiritual. Pois, todo o seu modelo social foi imposto pela "Palavra de Iahweh", que não era, como em outros casos, uma tradição sagrada de conhecimento, mas um modo de vida incorporado numa lei moral e numa história sagrada que os separavam de todos os outros povos do mundo antigo.
É perceptível que a tradição judaica se distinguiu por uma firme hostilidade às tradições religiosas de povos mais civilizados que o cercavam. Por exemplo, enquanto todo o mundo antigo estava sendo integrado em uma grande sociedade pela influência da cultura helenística e do governo da lei romana, um povo de tradição judaica se recusava, obstinadamente, a ser assimilado.
Após tenebrosas eras de conquista e opressão, este povo que se apresentou como "remanescente" ainda conservava firmemente a herança sagrada da lei divina, que era o fundamento da vida nacional. O que é notório neste fato, é que outras religiões mundiais, como as da Índia e as da China que foram grandes culturas e consideravam-se civilizações mundiais, não tinham rivais no seu próprio mundo. Mas Israel, sempre teve a consciência da posição de minoria, sobre os gigantes Egito, Assíria, Babilônia, Pérsia, Macedônia e Roma. Para os judeus, essa singularidade era resultado de uma vocação e eleição divina.
Israel entende-se como escolhido entre as nações para ser testemunha de Deus e portador da Revelação divina. Esse chamado ocorreu num período distante da história, em meados da Idade do Bronze, em algum momento da metade do segundo milênio antes de Cristo, quando Iahweh chamou Abraão.
Este chamado é apresentado não como um movimento tribal de imigração ou conquista, mas o chamado de um indivíduo em particular, a quem foi reservado um destino que era incapaz de compreender, mas que aceitou, nas trevas da fé, sob a influência de uma experiência profética, descrita de maneira obscura, no capítulo 15 de Gênesis.
Então, por trás da vocação nacional do povo hebreu está a ideia de uma vocação pessoal baseada em uma revelação individual exclusiva. Não está claro a qual povo Abraão pertencia, pois os chamados "hebreus" talvez eram os Habiru ou Apiru que surgem nas inscrições sírias e egípcias e parecem ter sido uma classe, não uma raça - possíveis guerreiros nômades.
De qualquer modo, a tradição religiosa precedeu a tradição nacional, da qual foi a fonte. As origens de Israel como nação começaram somente com o êxodo e aliança no Monte Sinai que consagrou todo o povo, assim como Abraão fora consagrado na primeira aliança. Aqui, mais uma vez, um profeta individual, Moisés, foi apresentado como o salvador do povo para retirá-lo do Egito, como o canal da revelação divina e o doador da lei divina. Consequentemente, Moisés e a aliança do Monte Sinai são rememorados por toda a tradição judaica como os criadores da única sociedade e cultura teocráticas de Israel.
Dawson explica que "toda cultura é uma ordem moral, mas o ordenamento moral de Israel era idêntico à lei de Iahweh, como revelada a Moisés e elaborada conforme os ensinamentos dos sacerdotes e profetas". Então, a essência da lei de Deus para Israel na história é, primeiro, a história sagrada da vocação e libertação de Israel; em segundo lugar, a aliança de Iahweh com Israel como a forma constitutiva de existência; e, em terceiro, os encargos e obrigações morais impostas a Israel pela lei, condição da aliança (Dt 7.6-8;11).
A revelação para Israel cria um processo de educação e treinamento contínuos pelos quais uma tribo semisselvagem de pastores nômades foi gradualmente refeita, transformando-se num instrumento singular para o cumprimento do propósito divino para a humanidade. A aliança de Iahweh com Israel era mais que um contrato, era uma comunhão viva ou, como os profetas posteriores a descrevem, um casamento sagrado. E esse conceito, que inclui a introdução de um princípio divino na história - não segundo o estilo pagão de deificação das forças da natureza, mas pela associação do homem com Deus no cumprimento da missão divina - é a chave para toda a revelação judaico-cristã.
Para mergulhar neste universo, podemos citar a história do profeta Elias, sua posição de poder real e conflito com os profetas de Baal nos oferecem um retrato comovente do conflito entre duas religiões e dois ideias espirituais que competiam pela alma de Israel. A ida de Elias ao monte Horeb simboliza o retorno à tradição mosaica, característica da reforma profética (1 Reis 18-21). Veremos, na sequência da história de Israel, que todo o corpus de escritos proféticos é um diálogo contínuo entre o porta-voz de Iahweh e seu povo, que renova e torna mais forte a relação entre Israel e Iahweh estabelecida no Monte Sinai.
Quando os dois reinos, Israel e Judá, foram destruídos, os profetas compreenderam que foi o julgamento de Iahweh sobre a incapacidade de Israel e da casa de Davi de preservar a aliança. A destruição de Israel não foi derradeira, ao final, o reino deveria ser restaurado quando as pessoas deixassem de confiar no homem e depositarem sua confiança no poder de Iahweh e na sua salvação.
Vemos no profeta Jeremias, no final do século VII a.C. que além da observância da lei e obediência, era necessário uma aliança espiritual "escrita no coração" e, individualmente, na consciência de cada fiel (Jr 31.31-33). Essa esperança no renascimento espiritual e na restauração de Israel durante os séculos teve uma influência transformadora na religião de Israel durante os séculos subsequentes. Aos poucos, a ênfase da religião judaica foi transferida do passado para o futuro e passou a se centrar no futuro Reino de Deus.
Desta maneira, o centro da comunidade judaica não era mais a nobreza e os governantes, mas passou a ser identificada com um grupo interno de devotos que representavam os escolhidos, os "remanescentes de Israel". Assim, do período do exílio e pós-exílio, Israel trasmudou-se de povo em comunidade religiosa - uma sociedade religiosa unida pela obediência a Iahweh e lealdade à lei. Foi nestes séculos que surgiu a esperada restauração de Israel não como um simples retorno de exilados ou re-estabelecimento da adoração no templo, mas como um triunfo cósmico de Iahweh sobre as nações e falsos deuses (Mq 4.1-2; Is 2.1-5; Is 11.1-4)
Então, nas profecias do reino messiânico, sobretudo nos desdobramentos mais amplos que receberão na segunda parte do livro de Isaías, a esperança de Israel encontra expressão plena e derradeira. Mesmo assim, permanece o dualismo mal resolvido entre o universalismo espiritual dessa mensagem e o patriotismo nacional, que também era parte essencial da tradição judaica.
Quando no século II, surgiu a nova crise, com a tentativa de um rei selêucida incorporar os judeus à cultura helênica, novamente Israel empunhou a espada contra os gentios. Sobre a liderança dos macabeus conseguiram assegurar a independência política e criar o Estado judaico. Mas, este resultado não foi o glorioso reino da profecia. Foi, simplesmente, outro reino dentre os reinos deste mundo. Um reino fraco dependente do império Romano.
Assim, o problema dos judeus era: se deveriam esperar o messias como um libertador político, um novo e mais grandioso Judas Macabeus, ou se abandonariam todos os sonhos políticos e depositariam a fé, exclusivamente, no braço do Senhor e na vinda de um messias que iria destruir o mal império mundial por um miraculoso poder. Esse é o passo final na revelação judaica, e encontra expressão na literatura apocalíptica característica do período pós-macabeu.
Veremos, então, no século I d.C., pelo menos quatro escolas diferente entre os judeus, que buscam responder este passo final na "revelação judaica". São eles: os sauduceus, o partido da aristocracia governante que estava pronto para cooperar com os romanos e com a dinastia herodiana. Os zelotas, o partido da resistência atuante que estava determinado a repetir a violência revolucionária da insurreição nacional dos macabeus. Em terceiro lugar a dos fariseus, os sucessores dos hassidim e antepassados dos judeus rabínicos, que eram o partido da observância estrita da lei. Além destes, os essênios, que formavam uma espécie de ordem monástica e seguiam uma regra de vida ascética, uma seita idêntica ao partido da Nova Aliança ou zadoquitas, profundamente influenciados por ideias apocalípticas e escatológicas, bem como pela prática do batismo e da refeição comunal.
Parênteses...
Dawson abre um parênteses e explica que este caminho que está fazendo não quer dizer que somente Israel foi por mais de mil anos, o veículo exclusivo da revelação divina; quer dizer também que, na tradição de Israel, foi estabelecida uma relação ímpar entre Deus, o homem, a sociedade humana e a história, uma relação que não foi rompida pela deserção de Israel, mas foi continuada e ampliada na igreja cristã e na sua história. O Antigo e o Novo Testamento ou alianças, portanto, são uma evolução gradual, única e integrada, sem paralelos, entre as religiões do mundo.
Diferente de outras grandes religiões históricas, como as da Índia e China, que eram essencialmente naturais e buscavam manter a harmonia entre a vida humana e o divino ordenamento da natureza. A revelação judaica, apresenta um Deus vivo e pessoal que é, essencialmente criador do mundo, do homem e da história. E esse poder criativo é mostrado não só naquilo que ele fez, mas no que faz e no que está prestes a fazer; inclusive na criação de um novo povo que está destinado a ser portador, na história, do desígnio divino pelo qual Deus irá mudar a própria natureza e renovar a face da Terra.
O Cristianismo carregando a ideia de revelação judaica
Para o cristianismo, Christopher Dawson traça uma dupla relação entre Antigo e Novo Testamento no que tange a Revelação: teológica, pois a revelação da palavra de Deus é realidade suprema, um Criador e Juiz; mas também é histórica, já que mostra como a Palavra de Deus foi a força criativa que moldou e transformou a vida do povo de Deus e o guiou pela vastidão da história, preparando as veredas para a vinda do Reino de Deus.
Assim sendo, a tradição literária do Antigo Testamento encontra conclusão na nova expressão do espírito profético - o Apocalipse ou "Revelação das últimas coisas", em que a vinda do Reino está associada ao fim do mundo ou o fim da presente ordem mundial.
Até este ponto, percebe-se que a tradição do Antigo Testamento é um registro único, que mostra com maior clareza a função sociológica da religião e o modo como a lei religiosa e o ordenamento ritual se identificam com a ordem moral e, por fim, com a ordem social, de modo que a Lei que formava o povo e a política, e não o oposto.
Já o Novo Testamento, mostra como o cristianismo estava enraizado no Antigo Testamento e na tradição judaica. Mesmo assim, vale comentar que tanto o judaísmo, como o cristianismo, passou por grandes mudanças nos primeiros séculos de nossa época. Do qual, o judaísmo se reconstruíra depois de duas grandes guerras com Roma, e foi o Talmude que posteriormente formaram a mentalidade do judaísmo. Da mesma maneira, o cristianismo durante os mesmos séculos, foi profundamente influenciado pelo helenismo e, a tradição judaico-cristã primitiva, aos poucos, desvaneceu após o primeiro século.
A Igreja cristã adotou a antiga versão grega do Antigo Testamento (LXX - Septuaginta), que era herança comum de judeus e cristãos, mas foi abandonada pelo judaísmo após a queda de Jerusalém e ouve um grande rompimento entre as duas tradições. O Ocidente seguiu a tradição judaica das Escrituras, isto é, o texto Massorético - primeiro com São Jerônimo (347-420) e a Vulgata, que se tornou a Bíblia oficial da Igreja Católica, e depois, com as novas traduções das Escrituras feitas a partir do hebraico após a Reforma Protestante. A Igreja Oriental, no entanto, como era natural, aderiu à tradição da Septuaginta.
A influência do Antigo Testamento na Igreja era extraordinariamente forte, como podemos ver na liturgia, em especial, a da Vigília Pascal. Neste sentido, pode-se dizer que um cristianismo sem o Antigo Testamento deixa de ser cristianismo e torna-se uma religião bem diferente, como a que os Padres da Igreja encontraram quando condenaram os gnósticos Marcião (85-160) e os maniqueus. A continuidade do cristianismo com a tradição do Antigo Testamento e a concepção da Igreja como a nova Israel é parte fundamental da fé cristã.
Dawson evidencia que a interpretação cristã da história foi criação dos profetas hebreus e continuou sem grandes mudanças por Paulo, João e Agostinho.
Então, tem-se no Antigo Testamento, particularmente nos Profetas, pela primeira vez a ideia de uma orientação da Divina Providência e da intervenção divina na história (1): a concepção de que os grandes eventos da história estão todos integrados num plano divino voltado para o julgamento de Deus. Juntamente com isso há um dualismo histórico (2): existem dois princípio em curso na história: a verdadeira história (a história sagrada) não é a mesma coisa que a história aparente ou secular. O sentido e o valor espirituais estão ocultos sob o véu da política visível e da mudança econômica. Também existe o papel vital dos indivíduos chamados por Deus para desempenhar sua vocação (3): isso é visto no chamado de Abraão, Moisés, vocação (missão) profética, o Ciro II da pérsia (Is 41.44). Por fim, há o tema do julgamento divino (4): o fim da história. Cada um dos grandes impérios e civilizações será julgado por Deus e pela história. Todos estes temas são repetidos e reinterpretados pelos mestres cristãos ao longo das eras.
Sendo assim, na história de Israel, uma singular tradição religiosa nasceu no mundo da história. Em comparação com as demais religiões, essa tradição não era expressão de uma civilização mundial,mas era expressão e encarnação da religião e, à parte da religião, a cultura de Israel era quase inexistente.
Assim sendo, o Antigo Testamento, que era o registro da tradição de Israel, também era o registro da revelação divina na aliança do Sinai, a lei de Deus e a palavra dos profetas; e esta última culminava no anúncio da vinda do Reino de Deus que se realizaria pelo advento do messias - ao mesmo tempo rei e salvador - e pelo julgamento das nações.
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